Na minha pele. Mulheres relatam como é viver com autismo

Quando um colega de trabalho disse a Rita Louzeiro que “adoraria saber como era uma negra na cama”, aquilo a incomodou. Ela não conseguia, porém, verbalizar onde estava o problema. A reação física, entretanto, foi imediata: o corpo de Rita se retorceu e uma perturbação a invadiu.

Rita é mulher, negra, da periferia, feminista, ativista na luta pelos direitos das pessoas com deficiência, servidora pública, pedagoga, ex-aluna da Universidade de Brasília (UnB) e também alguém com autismo. A última característica não a resume, mas representa uma parte importante de quem Rita é.

“A gente não tem a leitura social bem desenvolvida, faltam ferramentas de linguagem para entender as entrelinhas do racismo e do machismo, por exemplo. Quando ele falou daquela maneira, soube que era errado, mas não exatamente como”, lembra.

Ela faz parte de um grupo frequentemente invisibilizado. Neste 2 de abril, Dia Mundial de Conscientização do Autismo, é preciso ressaltar as dificuldades no diagnóstico de mulheres com o transtorno.

As principais pesquisas que desvendaram o autismo, como a realizada por Hans Asperger, em 1943, tiveram como base majoritariamente indivíduos do sexo masculino. Talvez por isso, características usadas para definir a síndrome são tidas como mais naturais aos homens.

Estudos recentes, porém, chamam atenção para a necessidade de falar sobre como ela se manifesta no sexo feminino. A proporção de quatro homens para uma mulher no autismo é questionada por alguns especialistas.

Pesquisas atualizadas sugerem fatores para explicar essas diferenças de frequência entre os sexos. Um deles seria o fato de as manifestações clínicas nas meninas serem diferentes. Por exemplo, nelas, ansiedade é um dos sintomas possivelmente relacionado ao autismo. Isso não implica que toda menina ansiosa é autista.

“Há várias pesquisas em desenvolvimento e, muito possivelmente, quando os critérios de diagnóstico forem mais bem definidos, a diferença de frequência entre os sexos tenderá a ficar menor”, explica Maria Rita dos Santos e Passos Bueno, coordenadora do núcleo voltado a autismo do Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco do Instituto de Biociências (IB) da USP.

A PhD em neurociência e comportamento Vânia Canterucci Gomide-Çakmak ajuda a entender a questão genética que justificaria a maior incidência de autismo em meninos.

“Muitas das síndromes e mutações genéticas do Transtorno do Espectro Autista (TEA) são relacionadas ao cromossomo X (os meninos só possuem um, o que justificaria maior gravidade do quadro). As meninas podem ter compensações pelo segundo cromossomo X que possuem, fazendo o TEA parecer mais leve”, diz.

A especialista, que tem 28 anos de experiência no assunto, explica as dificuldades em se diagnosticar o autismo. “Exames como tomografia e ressonância nuclear magnética predominantemente não mostram anormalidades, pois as diferenças são funcionais. Já alguns exames de imagem funcional podem sugerir ou mostrar alguma diferença, mas nem sempre conclusiva, pois as alterações no sistema nervoso central provocadas pelo autismo são muito amplas e difundidas pelo cérebro”, relata.

O que é autismo, afinal?

TEA não é doença. Trata-se de um grupo de desordens complexas do desenvolvimento do cérebro que podem levar à dificuldade de comunicação e comportamentos repetitivos, para citar alguns exemplos. As pessoas no espectro podem ter intensidades diferentes nas suas limitações.

A professora assistente de psiquiatria na Universidade da Califórnia Somer Bishop, em artigo para o Spectrum News, ressalta que até as definições do espectro no Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM) são apenas exemplos. Não há um caso igual ao outro.

“Infelizmente, a habilidade de um médico ir além do que está escrito depende pesadamente da experiência — não apenas com garotas autistas, mas também com garotas típicas. Afinal, se os médicos não estão superletrados em como uma menina de uma determinada idade e nível de desenvolvimento se comporta, então, eles vão ter muitas dificuldades para avaliar as habilidades de uma criança com autismo”.

Não diagnosticar mulheres significa abrir mão de oferecer a elas tratamento adequado. É deixá-las expostas ao mundo sem ferramentas de defesa.

“Há vários recortes dentro das questões de gênero, entretanto, desconheço um mais sofrido que o das mulheres com deficiência. Às mulheres autistas, é negado acesso ao diagnóstico, pois todos os estudos sobre autismo foram realizados por homens em homens e o cérebro feminino tem nuances muito diferentes”, explica a advogada e presidente da Comissão de Defesa da Pessoa com Autismo da OAB, Adriana Monteiro.

“Quando falamos de mulheres autistas que exigem um suporte maior, como as que não têm fala oralizada, a violência vira rotina, pois sua vulnerabilidade diante de um mundo sem recursos assistivos e tecnológicos para uma comunicação alternativa eficaz a deixa à mercê do outro sempre”, ressalta Adriana Monteiro.

Mulheres autistas, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), estão quatro vezes mais expostas ao risco do abuso sexual. Quando se fala em outras deficiências, algumas estão 10 vezes mais suscetíveis.

Para se proteger do assédio, do racismo e do machismo cotidiano, Rita Louzeiro buscou informação. No mesmo dia de conclusão do curso universitário, ela tomou posse em uma vaga no Ministério da Saúde. Passou a ter dinheiro para pagar pelo acesso à internet, o que abriu as portas para um mundo novo.

Ao conhecer ideias de pessoas como Djamila Ribeiro e Stephanie Ribeiro, ativistas negras que usam as redes sociais como um dos meios para amplificar a voz, Rita compreendeu a agressão sofrida  naquele encontro com o colega. “Por ser autista, eu precisei de mais tempo para digerir a situação e compreender o que havia acontecido”, diz.

Moradora de Planaltina (DF), Rita divide a casa com a mãe e o irmão, Sérgio, que tem grau de autismo elevado e precisa de ajuda para atividades básicas. Aos 33 anos, ela não tem um diagnóstico oficial. Não quis o documento, pois teme que o “carimbo” de um médico a faça parecer incapaz de cuidar de Sérgio, caso a mãe não esteja mais por perto.

“Já vi mães autistas perderem a guarda dos filhos por muito pouco. O acúmulo de preconceitos que uma mulher, negra e com deficiência, sofre é brutal”, relata.

Atividades como dirigir sem GPS e falar ao telefone estão entre os desafios diários de Rita. Ela confirmou as suspeitas sobre ser autista ao entrar no mercado de trabalho. “Na faculdade, eu não tinha amigos, falava as coisas e achavam que eu estava sendo grosseira. No trabalho, fui obrigada a conviver socialmente e as crises se multiplicaram”, relata.

“Não quero um cuidador, quero um amor”

Para Calinca Alcantara, o diagnóstico foi esclarecedor. Ao completar 1 ano, ela tapava os ouvidos com as mãos na hora dos parabéns. O barulho a incomodava além do esperado. As lembranças da infância estão vivas: a dificuldade em fazer amigos na escola, o bullying, a sensação de ser diferente sem saber explicar exatamente por que.

A recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) é que o diagnóstico seja fechado antes dos 3 anos de idade. Somente aos 25, Calinca conseguiu dar um nome à sua condição. Ela se descobriu autista há 5 anos, quando precisou mudar da casa onde vivia desde criança, entrou em depressão profunda e teve crises de pânico com a alteração da rotina. Hoje, aos 30, compreende melhor quem ela é.

“Um psicólogo chegou a dizer que meu problema era ser feia, que eu precisava trabalhar a autoestima. Profissionais de saúde devem ouvir suas pacientes com mais empatia”, afirma.

Calinca mantém um canal no YouTube, o Rivotrip, no qual fala sobre diversos assuntos de seu interesse, entre eles, o autismo. Por conseguir se comunicar bem diante da câmera e postar fotos, já foi alvo de preconceito.

 

“Postei foto de biquíni na praia e logo me atacaram numa combinação de machismo com capacitismo. Não deixo de ser mulher, de ter sensualidade, por ser autista. Nos negam inclusive a possibilidade de um relacionamento, como se só pudéssemos ter cuidadores”, relata.

“Nada sobre nós sem nós”

Crescer cercada dos cuidados adequados faz muita diferença. A história de Amanda Paschoal, 26 anos, reforça essa importância. Seu diagnóstico veio aos 9 anos. A mãe dela é psicóloga e notou a condição da filha.

Amanda teve acesso a psicólogos e frequentou uma escola parque, o que, segundo ela, foi bastante “terapêutico”. Hoje, é aluna de artes visuais na UnB e fala por si mesma. Usa o lema “nada sobre nós sem nós” para explicar a que veio.

Tornou-se palestrante e nas apresentações aborda, além da história por trás da descoberta do autismo, questões de gênero. “Nunca sei se alguém está falando de um jeito infantil comigo por eu ser mulher ou por ser autista”, diz.

Ela ressalta que meninas autistas tendem a imitar o comportamento social das pessoas ao redor, para se encaixarem na sociedade. “Como mulher, somos socializadas para agradar, para caber num padrão. Para a autista, isso vem em dobro. Nos acostumamos a esconder nosso jeito, nossos movimentos repetitivos, para não incomodar os neurotípicos”, diz.

A universitária se movimenta livremente enquanto fala. Esfrega as mãos uma na outra, faz pausas para se articular. Usa no pescoço um mordedor sensorial em forma de pingente que a acalma. Amanda descobriu-se única. Está livre da expectativa de se parecer com os outros.