A morte de Preta Gil nos atravessa como o fim precoce de uma voz que era muitas: cantora, mulher, filha, mãe, guerreira. Uma mulher preta, viva, cheia de cor, que — como o nome já sugeria — não passava despercebida. E quando alguém assim se vai, falta mais do que a presença: falta o impacto, o riso alto, a resistência. Falta o verbo.
E é justamente aí que a Língua Portuguesa entra. Tentando — como pode — dar nome ao indizível. Luto. Perda. Pêsames.
Luto vem do latim luctum, que significa “lamentar, chorar, sofrer profundamente”. É a forma que a língua encontrou de dizer que a alma está em estado de dor. Luto é verbo que virou substantivo. É ação que virou roupa preta, silêncio no olhar, nó na garganta.
Perda, por sua vez, vem do latim perdere — formado por per- (intensidade, destruição) + dare (dar). Ou seja, perder é dar algo que não se queria dar. É um presente arrancado. Quando dizemos “foi uma grande perda”, estamos reconhecendo não só a ausência, mas o valor de quem partiu.
E então dizemos: meus pêsames. Palavra que, curiosamente, só existe no plural. Nunca ouvimos “meu pêsame”. Isso porque vem de pesar — no sentido de “ter pesar por algo”. Os pêsames são, portanto, as parcelas do nosso pesar. Fragmentos de dor compartilhada.
E ela não está sozinha: outras palavras também vivem no plural: parabéns, condolências, férias, víveres, proximidades. Talvez porque certas experiências humanas sejam mesmo impossíveis de viver sozinhas. O pesar, assim como a alegria, exige companhia.
Quando dizemos “meus pêsames”, estamos tentando colocar em palavras algo que não se traduz completamente. E, mesmo assim, a língua tenta. E, ao tentar, acolhe.
Porque, no fim, talvez seja essa uma das maiores belezas da nossa língua: ela não resolve a dor, mas nos permite dividi-la.
Preta Gil se foi. Mas o que ela foi permanece. E quando nos faltam palavras, a própria língua oferece suas formas de sustentar a dor: em verbos que choram, em substantivos que se vestem de silêncio, em plurais que abraçam.
Que nossos pêsames sejam, então, mais do que protocolo. Que sejam presença, respeito, memória.
E que Preta, como ela mesma dizia, continue “preta, viva e imensa” — agora em nós.