Esta coluna de hoje ressalta a herança deixada pelos homens que percorriam, com suas tropas, quilômetros para transportar alimentos à regiões distantes.
Naquela época, mercadorias e produção do cerrado eram transportadas em mulas e burros; não existiam caminhões.
Mas houve um tempo, entre o século 17 e a metade do século 20, quando existiam estradas, que o transporte de quase toda a produção agrícola do interior de Minas era feito pelo tropeiros em lombo de mulas e burros.
Escrevendo, descubro sempre um recorte do cerrado em meus registros. Quando escrevo, repito sempre o que vivi, ouvi e pesquisei.
Sim, o cerrado é um território mágico para expressar minha escrita.
As mulas e os burros sempre estiveram presentes: na vida minha vida, de minha família, e na minha travessia. Esses animais prestaram inestimáveis serviços pela travessia do cerrado norte mineiro.

Tudo começou com meu pai, quando ele comercializava produtos entre Montes Clarsos (MOC) e Salinas. Meu pai fazia Salinas/MOC, passando pelo percurso que hoje é a BR-251.
Ele iniciava em Salinas, passava por Lagoinha, Fruta de Leite, atravessava o Rio Vacarias, chegava em Vale das Cancelas, seguia e passava pela Bocaina, Barrocão, São Calisto, Francisco Sá, até chegar em MOC. Esses povoados e cidades eram pousadas dos tropeiros. Nos locais, eles armavam redes e acendiam fogueiras. Faziam rodas para modas de viola e contação de casos.
O mapa do Circuito dos Tropeiros, criado por este contador de estórias, com referências ao trajeto e principais lugares mencionados na minha Coluna Sal da Terra e em livros, é mostrado em fotos.
Parafraseando Guimarães Rosa: “nós, os homens do cerrado, somos contadores de histórias e estórias por natureza”.
Está no nosso sangue narrar estórias; já no berço, recebemos esse dom para toda a vida. Desde pequenos, constantemente escutamos as narrativas multicoloridas dos velhos: os contos, causos e lendas.
Deste modo, a gente se habitua, e narra histórias e estórias, que correm por nossas veias e penetram em nosso corpo, em nossa alma, porque o cerrado é a alma de seus homens (…)

Os burros e mulas foram transportes em tempos de luta, animais de carga, amplamente utilizados.
A resistência destes animais e a adaptabilidade ao clima do cerrado fazem deles uma opção viável para longas travessias, carregando produtos, feiras, tocando gado, tocando engenhos, entre nascentes, vales, veredas e montes, onde nenhum outro transporte existia.
Foram resistências em terras tão distantes do progresso das Minas. Foram transportes nos Gerais e nos descampados.
O cruzamento entre uma égua e um jumento resultou em um híbrido que combina o que há de melhor em ambos: robustez, sagacidade e a habilidade de atravessar o cerrado em regiões onde outros meios de transporte não conseguiam chegar.
Mulas e burros não apenas ajudaram a construir o passado, eles merecem um lugar de honra em nossa memória e nosso respeito. Não são apenas animais: são companheiros de travessia, trabalhadores incansáveis e símbolos de luta.
E, sempre foi uma prática que remete a formas tradicionais de transporte e trabalho no Brasil, especialmente em regiões onde o acesso às estradas pavimentadas era limitado ou não existia.

Muitas comunidades no cerrado viviam em áreas remotas, onde veículos são inacessíveis. Os animais (burros e mulas) foram uma solução eficaz para levar suprimentos e facilitar o transporte de pessoas entre vilarejos.
Além do transporte, esses animais foram frequentemente utilizados em atividades agrícolas. Eles ajudaram no arado da terra e em outras tarefas, contribuindo para a agricultura familiar.
Em um bioma como o cerrado, onde as condições climáticas podem ser desafiadoras, os burros e as mulas eram notoriamente resistentes e exigiam baixo custo de manutenção, o que os torna aliados importantes para os habitantes locais.
Para concluir, posso afirmar que a travessia pelo cerrado utilizando burros e mulas foi uma prática que não apenas reflete a tradição e a cultura local, mas também representa uma forma de resistência e adaptação às condições do ambiente.
Embora enfrente diversos desafios, a continuidade dessa prática pode contribuir de forma significativa para a preservação da identidade cultural, além do desenvolvimento sustentável das comunidades que habitam essa região rica e diversificada.
