O estupro de uma jovem de 22 anos no último fim de semana na região Noroeste de Belo Horizonte levantou debates sobre a conduta dos motoristas de aplicativo. Um trabalhador de uma plataforma de corridas deixou a mulher desacordada e sozinha na rua, em plena madrugada, após realizar uma viagem de um show de pagode até a residência dela. Na sequência, a jovem foi carregada por um suspeito até um local ermo, onde ela foi estuprada. O suspeito do crime foi preso, e o motorista suspenso da plataforma temporariamente. Trabalhadores da categoria relatam falta de orientação e abandono das empresas nessas situações.
“A minissaia dela já estava na cabeça. Eu falei: ‘Poxa. O que eu vou fazer agora, meu Deus do céu?’”, relembrou o condutor, que diz ter procurado um posto da Polícia Militar na região e foi auxiliado por um policial, que o acompanhou até o local onde estava marcado o fim da corrida.
Chegando ao local, o policial conseguiu acordar a mulher, que indicou onde era a casa dela. Ao bater no portão, eles foram atendidos por um homem que, segundo o condutor, era namorado da vítima. O motorista recordou que o rapaz tentou agredi-lo.
“Veio pagando o maior sabão para mim. Apelou, partiu para cima de mim, queria me agredir de todo jeito”, descreveu. O policial foi quem evitou que a situação fosse às vias de fato.
Outro motorista, que também não quis se identificar, relatou que esses casos são frequentes, principalmente entre sexta-feira e domingo. “Infelizmente, os passageiros no final de semana abusam um pouco do álcool e chegam para fazer as corridas muito embriagados mesmo, até agressivos. Outros até sem saber onde estão ou o que estão fazendo”, reclama.
Os motoristas também relatam que, em muitos casos, passageiros em situação de vulnerabilidade acabam os fazendo perder tempo procurando por ajuda, seja em unidades de saúde, seja em bases e batalhões da polícia. “O tempo que você está ali, outras chamadas estão chegando, e você não pode atender porque não finalizou uma. Te traz um prejuízo momentâneo e posterior que, no fim do dia, acarreta uma irritabilidade gigantesca”, se queixa um condutor da categoria.
Todos os três motoristas que conversaram com a reportagem relataram falta apoio das plataformas nesses casos, assim como de uma orientação de como proceder. “Literalmente, as plataformas nunca nos deram nenhum tipo de treinamento, nenhum tipo de apoio. Nada. Literalmente, zero”, dispara um dos trabalhadores.
Diante desses casos, muitos deles, para evitar situações difíceis, acabam cancelando corridas, por medo. “Quando eu vejo que a pessoa está alcoolizada, eu infelizmente não dou atendimento”, admite um motorista de app.
O que fazer?
Ao se deparar com passageiros em situação de urgência médica, ou algo do tipo, os motoristas de aplicativo são recomendados a tomar a seguinte atitude, conforme explica o delegado da Polícia Civil de Minas Gerais Saulo Castro. “Deve ligar para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) pelo 192 e reportar o ocorrido informando a localização, de modo que uma ambulância possa se deslocar para resgate”.
“Se isso não for possível, o motorista deve se dirigir à unidade de saúde para atendimento de urgência de modo a preservar a vida do cidadão que ele transporta. Jamais abandonar, já que essa é uma atitude que não esperamos do próximo”, esclareceu.
O motorista que deixar de prestar tais assistências ao passageiro pode, a depender dos trabalhos de investigação policial, responder criminalmente por abandono de incapaz. “O crime está previsto no artigo 133 do Código Penal, cuja pena é detenção de seis meses a 3 anos. Se o abandono de incapaz resultar em lesão grave ou até a morte,o próprio código traz uma pena mais grave. Nos casos de lesão, reclusão de 1 a 5 anos e, se resultar em óbito de 4 a 10 anos”.
“É considerado incapaz qualquer pessoa impossibilitada de se defender do risco resultante do abandono. A pessoa pode estar embriagada, em crise epiléptica, eventualmente um menor de idade. É em sentido mais amplo”, explicou Castro.
Com relação às plataformas de mobilidade, o delegado alegou que “do ponto de vista criminal” é difícil algo acontecer contra elas. “Apesar disso, o passageiro que se sentir lesado pode, por meio de advogado, demandar motorista e empresa, pois é essa que cadastra e fiscaliza as atividades destes prestadores de serviço”.
Combater a cultura do esturpo é necessário para que casos como o registrado em Belo Horizonte reduzam. Tudo passa pela educação, conforme sugere Castro. “Penso que a cultura é a construção da sociedade num determinado período da história. Da maneira que foi construída, de forma gradual, ela deve passar pelo processo de desconstrução, mas isso não acontecerá de hoje para amanhã. Envolve vários atores: família, escola, políticas públicas e, em casos mais graves, a ação policial. A prevenção é essencial, mas tudo passa pela educação”.
O que dizem as empresas
O TEMPO procurou as empresas questionando sobre as orientações repassadas aos profissionais sobre como devem atuar em casos nos quais os passageiros se encontram em situação de incapacidade. A 99 informou que a recomendação é que os motoristas contatem as autoridades competentes pelo 190 para entender o procedimento adequado a ser tomado.
“No app, a 99 possui um botão de segurança que permite ligar diretamente para a polícia. A empresa está reforçando essa mensagem aos motoristas parceiros pelo Guia da Comunidade e os Termos de Uso da plataforma”, disse em nota.
Já a inDrive informou que o diálogo entre motorista e passageiro devem se comunicar quanto a “eventualidades”, visto que a missão do condutor é levar qualquer usuário em segurança ao destino. Quando o usuário sente-se mal durante o trajeto ou apresente outras eventualidades, deve ser levado ao hospital ou a casa de outra pessoa para que possa ser cuidada.
“Casos extraordinários quando ocorrem, a instrução é ligar para o nosso suporte (que opera 7/24h) e pedir as devidas orientações. Assim, a equipe pode auxiliar na busca por mais contatos (parente ou amigo) do passageiro cadastrado em “contatos de emergência” (nós pedimos sempre para todos usuários atualizarem com mais de um contato). Além disso, o motorista também pode chamar ambulância – os contatos de emergência ficam no app”, ressaltou.
A reportagem solicitou retorno da Uber na última segunda-feira (31 de agosto), mas até agora, não obteve resposta. Caso um retorno seja enviado, a reportagem será atualizada.
Com informações de O Tempo