A equidade entre homens e mulheres é um desafio em praticamente todos os espaços da sociedade. E na discussão e no acesso à água não é exceção.
Tradicionalmente, são as meninas e mulheres que buscam a água a longas distâncias, com a lata na cabeça onde a seca e o sol escaldante castigam. Cabe a elas lavar a roupa no rio, lavar as louças, lavar o corpo dos filhos e garantir que tenham água para beber. No entanto, elas são poucas nos cargos de gestão dos recursos hídricos.
Professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e ex-diretora de Gestão das Águas e do Território do Instituto Estadual do Ambiente, Rosa Formiga, já viu de perto o peso que meninas e mulheres do semiárido carregam para garantir o bem dentro de casa e como a vida delas são afetadas.
“O que percebemos no mundo inteiro, e principalmente no Brasil, é que quando falta a água tratada em casa, a tarefa de buscá-la em regiões distantes ou colocar a lata d’água na cabeça é endereçada às mulheres. Elas ficam com uma parte muito ingrata desse serviço. Então, a relação com o gênero é muito forte porque o acesso à água vai liberar a mulher para estudar, ter outros afazeres, se tornar uma profissional. Isso é muito frequente na África, na Ásia e principalmente no semiárido brasileiro. Precisamos dos serviços de água competentes para que isso se reflita na vida dessas mulheres”, diz.
Ela recorda que no interior do Nordeste conheceu grupos de mulheres que brigaram por 20 anos para conseguirem levar a água para suas comunidades. “Nós, mulheres urbanas, que sempre tivemos acesso à água facilmente, não temos noção do quanto uma questão tão básica, tão intrínseca à vida, pode ser a razão de ser de algumas pessoas”.
Gisele Forattini, participante da comissão que instituiu o Comitê de Gênero da Agência Nacional das Águas (ANA) e integrante do Global Water Partneship (GWP), também lembra o impacto da chegada de uma cisterna na vida das mulheres do semiárido.
“As crianças eufóricas diziam: ‘mainha, mainha, a água é docinha’. Não era água doce, era uma água que não era salobra. A primeira palavra que saiu da boca delas era ‘mainha’, não à toa”, lembra, quando participou do programa Um Milhão de Cisternas, executado pelo Ministério do Desenvolvimento Social para levar água para consumo e produção agrícola de famílias rurais de baixa renda.
“Quando a gente entregava cisterna, era sempre uma mulher que recebia um documento. Os maridos, muitas vezes, iam tentar a vida em São Paulo e, às vezes, não voltavam. A mulher ficava em casa cuidando da família toda e essa cisterna fazia uma diferença enorme na vida dela”.
Apesar de estarem na lida diária, elas são vozes pouco ouvidas nas políticas públicas. A elaboração de políticas públicas que contemplem o tema ainda é um processo de conquista.“Na gestão de recursos, o assunto é tratado de forma especialmente técnica, até pouco tempo dominada sobretudo por engenheiros”, diz Daniela Nogueira, pesquisadora do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB).
Apenas em 1992, na Conferência de Dublin – que reuniu representantes de 80 organismos internacionais, intragovernamentais e não governamentais para discutir Água e Meio Ambiente – foi reconhecido o papel central e estratégico das mulheres na provisão, na manutenção e na gestão da água.
Mas ainda há questionamentos sobre a incorporação do princípio na Política Nacional de Recursos Hídricos, de 1997. “Reconhecer a importância da participação das mulheres nos colegiados no Sistema Nacional de Recursos Hídricos – como é o caso do Conselho Nacional e dos Comitês de Bacias – é uma forma de dar efetividade à gestão”.
“Se eu tomo conta da água, tenho que ser ouvida”
Nascida em Minas Gerais, alagoana por escolha e filha de militar, Ana Catarina Pires cresceu experimentando diferentes relações com a água, em cada lugar do Brasil onde morou. E considera que o despertar para o assunto só aconteceu em 1998, ao trabalhar como consultora do programa Pró-Água Semiárido, realizado pelo Banco Mundial.
“Foi lá que eu comecei a beber água sentindo verdadeiramente o gosto, e não apenas por uma necessidade fisiológica”, conta a engenheira civil, ex-secretária do Meio Ambiente de Alagoas e integrante do grupo Legado, criado no âmbito do da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF).
A pesquisadora defende que se é delegada à mulher a tarefa de “tomar conta da água” em casa, ela não pode ser coadjuvante na tomada de decisão.
“Se eu tomo conta da água, tenho que ser ouvida. Como é que eu vejo? Você, eu, nascemos de onde? Do útero de uma mulher dentro de uma bolsa de água. Então, esse processo é muito forte na nossa vida, principalmente na vida de quem milita com isso. A gente que milita com isso, há 20 anos, 21 anos, a gente tem certeza que está excluída do processo. Porque, fazem de conta, como sempre, que a gente está na discussão. Temos excelentes profissionais, que fazem a diferença, mas sempre ela que é coadjuvante e a água é feminina”.
Para ela, a inclusão da mulher nos debates deve ser incisiva. “Na minha visão, é o reconhecimento dessa pessoa que faz parte do processo intensamente, só não faz parte do processo das discussões amplas, mas é a gente que discute água em casa, em qualquer lugar”, reforça.
“Tive em vários eventos em que era a única mulher”
A engenheira e professora da Universidade Federal da Bahia, Yvonilde Medeiros, encontrou na água o centro de sua carreira profissional. Dedicada a pesquisar a Bacia do Rio Salitre e participar dos debates da transposição do Rio São Francisco, ela conta que em sua trajetória muitas vezes era a única voz feminina.
“Você vai ver uma participação feminina muito grande nos comitês, nas câmaras técnicas dos comitês, do Conselho [Nacional de Recursos Hídricos]. Mas no conselho de forma geral, eu acho que já vai reduzindo a participação, pelo fato de que as mulheres, em geral, não atingem os cargos de mais alto escalão nos órgãos públicos. Isso é uma realidade do Brasil e uma realidade de outros países. As mulheres estão sempre mais na base, mas a proporção que vamos chegando mais a ao topo da pirâmide, o número e a participação feminina reduz. Eu já tive em vários eventos em que era a única mulher”, conta a professora, que tem mestrado em Hidráulica e Saneamento, pela Universidade de São Paulo, e doutorado em hidrologia pela University of Newcastle Upon Tyne, de Londres.
Cuidado e conservação
Enquanto são minoria nos altos cargos de decisão, elas estão entre as mais atuantes na defesa e no uso sustentável da água. A bióloga e pesquisadora da Embrapa Solos há 15 anos, Rachel Bardy Prado, destaca que as mulheres desenvolveram maior cuidado com os recursos naturais “pela própria relação que possui com a geração da vida: dos filhos”.
“Em relação à gestão da água, historicamente, estava muito mais voltada às soluções de engenharia (tratamento de água e irrigação), onde os homens sempre estiveram mais presentes do que as mulheres. Mas quando o assunto é conservação da água, vemos um destaque da participação feminina. Tanto é, que se tornou uma tônica mundial a incorporação da perspectiva de gênero no sentido de um maior envolvimento de representantes do grupo feminino na tomada de decisões relacionadas ao uso da água. O reconhecimento de que elas são peças-chave no trato da água para a saúde (água potável e saneamento), alimentação e equilíbrio ambiental dos ecossistemas”.
Para a pesquisadora, a educação é um dos caminhos para se alcançar a equidade de gênero nos órgãos de decisão. “A primeira medida é incentivar e assegurar, nos movimentos sociais, nos fóruns e comitês, a igualdade de gênero e uma participação equilibrada. Também promover políticas que valorizem o papel da mulher na conservação da água e e alertar os órgãos de fomento à pesquisa, como o CNPQ, Capes e outros sobre a importância em financiarem linhas específicas de pesquisa com foco no fortalecimento do papel da mulher na gestão da água”.
Desafios
Um dos grandes desafios para aumentar a participação feminina na gestão de recursos hídricos é a ausência de dados sobre a relação água e gênero. De acordo com Eldis Camargo Santos, assessora da ANA, a agência reguladora vem trabalhando no Projeto Legado, criado em dezembro de 2017 com o objetivo de levantar propostas de melhorias na gestão de recursos hídricos, dando ênfase ao papel da mulher, além de alterar a Lei 9.433, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, para adicionar os princípios de Dublin.
O Projeto Legado estará na pauta do 8º Fórum Mundial da Água, que ocorrerá entre os dias 18 e 23 de março, em Brasília.
No fim de 2017, a ANA realizou uma oficina internacional de gênero e água, com a presença de mais de 60 mulheres de diversos países que discutiram o assunto, que retornará no fórum.
Para incentivar a participação delas, a pesquisadora da UnB Daniela Nogueira defende capacitações específicas – para homens e mulheres. “Estamos pensando na criação de uma rede latino-americana de água e gênero justamente para formular estratégias concretas de como nós poderemos impactar na implementação de políticas públicas sobre o tema”, afirma.