Preta, periférica e doutora

Conheça a história da doutora em Literatura Andreia Pereira da Silva, uma testemunha do poder transformador da educação. Formada em Jornalismo e Letras Português, ela vem rompendo barreiras e mudando as estatísticas

Andreia Pereira durante a defesa da tese de doutorado, na UnB, em 2019. Foto: Ludmila Guimarães

A educação sempre ocupou um papel de destaque na história de pessoas que conseguiram mudar de vida e ir além da realidade difícil e carregada de limitações. A doutora em literatura, pela Universidade de Brasília (UnB), Andreia Pereira da Silva sabe bem o que é isso, uma vez que teve a vida transformada por meio do acesso à graduação.

Com 34 anos, além do doutorado, ela é formada em Letras Português, em Jornalismo, possui mestrado em Estudos Literários e foi aprovada no último Sistema de Seleção Unificada (SiSU) para o curso de Filosofia na Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). A doutora voltará à sala de aula para iniciar a sua terceira graduação.

Esse currículo tem história. Uma história que começa por volta da década de 1970, quando os pais de Andreia, seu Francisco Pereira da Silva e dona Maria Augusta Pereira da Silva, norte-mineiros, partem para o interior paulista em busca de melhores oportunidades. Andreia nasceu em São Paulo-SP, mas passou boa parte da infância em sítios e chácaras no interior do estado, onde os pais trabalhavam como caseiros. Viviam isolados, não tinha amigos para brincar, apenas a companhia do irmão mais velho, Wellington Pereira.

Eu sonhava em morar numa cidade grande e ter muitos amigos. Ainda em São Paulo, quando fui pra escola, foi maravilhoso! Era na escola onde eu tinha amigos. Eu era muito dedicada. A queridinha dos professores, confesso! Amava estudar, o mundo do conhecimento era mágico para mim”, conta.

Por volta do ano de 1995, a família Pereira da Silva mudou de vez para Montes Claros; foi um período de muitas dificuldades, pois o dinheiro que o pai ganhava como pedreiro e a mãe como empregada doméstica era apenas para sobreviverem. Não compravam roupas e ter café da manhã todos os dias era um luxo. Viviam com muita simplicidade e restrições.

Com 12 anos de idade, Andreia passou a acompanhar a mãe no serviço e aproveitava para ler livros e revistas dos patrões. Foi quando começou a entender que só teria uma vida diferente da mãe se estudasse, pois não queria seguir aquele caminho. Mesmo com o desejo, ela nunca teve vergonha da profissão dos pais, apenas sonhava com uma vida mais confortável e tranquila.

Até a oitava série do ensino fundamental, ela estudou em escola pública e depois teve a oportunidade de fazer o ensino médio numa escola particular, onde tinha bolsa. Para conseguir algum dinheiro, começou a trabalhar vendendo produtos de catálogos, roupas e peças de cama, mesa e banho. “Depois comecei a trabalhar em casa de família dando faxina. Também trabalhei como babá até o primeiro ano da faculdade”, pontua.

O acesso à escola particular

Andreia passou por muitas dificuldades, sobretudo financeira. Mas quando ingressou numa escola privada, vislumbrou um universo de oportunidades, momento em que teve certeza que sua vida seria transformada por meio da educação. Ela reconhece que se tivesse concluído a educação básica numa escola pública, possivelmente poderia não ter chegado onde está hoje.

Não estou criticando a escola pública, mas infelizmente faltava e ainda faltam muitos investimentos para que o poder público cumpra com efetividade a missão de ofertar, de forma amplamente democrática, uma educação de qualidade. Fico feliz, mas ao mesmo tempo triste, porque sei que fui privilegiada. Eu, inclusive, como mulher preta, sempre fui exceção em muitos ambientes pelos quais transitei”, destaca.

Uma coisa que sempre teve foi o pé no chão, pois sabia que a sua história e as condições da família não eram as mesmas de muitos dos colegas na escola particular e que tinha que agarrar com unhas e dentes aquela oportunidade.

E deu certo. Após concluído o ensino médio, Andreia foi aprovada no curso de Letras Português, da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), e em Jornalismo, no Centro Universitário Funorte, onde conseguiu uma bolsa de 100%, mas para isso precisou estagiar voluntariamente na própria faculdade.

Foram anos muito difíceis, pois a jovem tinha uma rotina muito corrida, afinal precisava conciliar os estudos, o estágio e alguns bicos que ela fazia de vez em quando para ganhar alguns trocados. Tinha uma vida comprometida de segunda a segunda e não eram raros os dias em que precisava cortar madrugada afora para dar conta dos trabalhos das duas graduações.

Muitas vezes passava o dia inteiro sem comer, porque não tinha dinheiro para lanchar durante os intervalos. Também fazia todos os deslocamentos a pé, pois eu não tinha dinheiro para pagar transporte. Emagreci 10 kg, que nunca mais consegui recuperar. Meus pais me ajudavam como podiam, mas fazer faculdade é muito caro mesmo quando você não paga pelo curso”, enfatiza.

A face perversa do preconceito

Desde quando nasceu, o preconceito sempre esteve presente em sua vida. Mas foi no ensino médio que Andreia começou a compreender o preconceito e o racismo que sofria, onde vivia angustiada por ter a sensação de estar em um lugar a que não pertencia e no qual teve que provar que podia ou merecia estar ali. Tanto no ensino médio quanto na faculdade, eram pouquíssimos os estudantes negros, mas ela estava lá sendo mais uma vez a exceção.

Para Andreia, a educação foi libertadora em sua vida e precisa seguir libertando as pessoas do egoísmo, do preconceitos e do medo. A professora, jornalista e doutora enfrentou todos os obstáculos para concretizar o sonho de ter sua vida transformada pela educação. Créditos foto: Camila Miranda

Para driblar essa questão, ela sempre se dedicou muito aos estudos, pois não bastava ser boa, ela tinha que ser a melhor: “Isso é muito cruel. Essa exigência racista da sociedade faz com que as pessoas pretas se cobrem muito, sejam perfeccionistas. Isso gera ansiedade, baixa autoestima, síndrome do impostor e tantas outras coisas”.

Andreia ainda destaca que as pessoas se assustam quando fala que é doutora em literatura, mas esse susto, segundo a jornalista, é pelo fato dela ser negra, pois acredita que se fosse branca a reação não seria de espanto, uma vez que as pessoas não estão acostumadas a ver pessoas negras em posições de privilégio, poder e decisão.

Hoje, sinto que as pessoas me toleram, mas o racismo continua. Ele só muda de expressão. Agora, percebo o racismo nos olhares, no espanto e na desconfiança da minha competência. Com todo o meu currículo, ainda tenho que provar que sou merecedora para ocupar determinados espaços”, conta.

A educação, os estudos e todo o conhecimento que vem adquirindo são armas para se tornar ainda mais forte e enfrentar o racismo de frente. Ela sabe que não conseguirá acabar com esse mal, mas sabe também que as pessoas precisam respeitá-la e respeitar também todas as pessoas negras, independentemente dos espaços que ocupam ou dos títulos que possuem.

Mestrado, doutorado e concurso público

Apenas 0,2% da população no Brasil tem o título de doutor. É o que aponta o Relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Talvez por conta de índices tão baixos, fazer doutorado nunca esteve nos sonhos da jornalista. Seu objetivo maior sempre foi passar em algum concurso público para ter uma condição financeira melhor. Mas, como sempre gostou muito de ler, pesquisar e de escrever, de 2012 a 2014, ela fez um mestrado em Estudos Literários, na Unimontes, no qual pesquisou sobre a poesia de Carlos Drummond de Andrade.

Ao concluir o mestrado, deu início ao doutorado e pesquisou sobre o Timor-Leste, país que também tem a língua portuguesa como idioma oficial, pois foi colonizado por Portugal. A história do Timor-Leste sempre a fascinou porque era um país sem soberania e autonomia até 2002, algo que a intrigava.

Ao longo dos quatro anos de doutorado, a pesquisa caminhou na vertente de estudar a poesia de Xanana Gusmão, que foi o primeiro presidente do Timor. “O que me motivou a fazer o doutorado foi, sobretudo, as oportunidades que esse título poderia me oportunizar. Nessa época, eu pretendia prestar concursos para universidades, e o doutorado seria muito importante”, destaca Andreia.

Como a vida é cheia de surpresas, um ano após iniciar o doutorado, ela foi chamada em um concurso que havia prestado anos antes no Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG), o que foi uma virada de chave em sua vida, pois concretizou um dos seus sonhos, que era ser jornalista dentro de uma instituição pública federal.

Para além da transformação financeira, encontrei no IFNMG a oportunidade de democratizar o acesso às informações de interesse público no âmbito da educação nas regiões Norte, Noroeste e Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Atualmente, ocupo o cargo de diretora de desenvolvimento institucional”, aponta a jornalista.

O poder transformador da educação

Estudar foi a chave para que Andreia pudesse mudar de vida. O conhecimento a possibilitou compreender que nesta sociedade ter acesso à educação é ter acesso ao poder e que hoje, ocupando espaços de liderança, seja na sala de aula, seja em um ambiente corporativo, ela percebe o quanto é necessário que mulheres e pessoas negras estejam também nesses lugares.

Ela sabe que pode contribuir muito para isso, sendo uma boa professora, sendo uma boa educadora, sendo uma jornalista comprometida com a verdade dos fatos, sendo uma cidadã que se preocupa com o coletivo. E foi a educação que a fez olhar para o próximo e reconhecer as suas dores e as suas necessidades.

A educação precisa ser libertadora. Precisa nos libertar dos nossos egoísmos, dos nossos preconceitos, dos nossos medos. A educação e o conhecimento seguem me libertando de tudo isso. Como uma forma de gratidão e de responsabilidade social, tenho como dever contribuir para a libertação de outras pessoas também, para que essas possam voltar a sonhar e a acreditar que concretizar um sonho é possível, apesar de todas as adversidades”, enfatiza.

Andreia ainda tem um grande sonho, mas prefere mantê-lo reservado para evitar comentários que possam desanimá-la durante a jornada. Para conquistar tudo o que tem até hoje, ela teve que ser muito forte para não se deixar abalar por tantos comentários maldosos ditos com a única intenção de fazê-la desistir. Há muitas pessoas que não conseguem lutar pelos seus sonhos e fazem de tudo para atrapalhar os sonhos dos outros, isso é fato.

Mas ela deixa bem claro, que, independente de alcançar ou não esse outro desafio, ela já é muito feliz pela trajetória que trilhou e pelas conquistas alcançadas até o momento; e, agora, o que deseja é sempre dar o seu melhor, a fim de que possa ser luz na jornada de outras pessoas.

Não perco a oportunidade de dizer ou mostrar para as pessoas que elas podem, sim, concretizar seus sonhos. As pessoas precisam voltar a sonhar e a acreditar, e eu quero ser um instrumento para que isso aconteça. Hoje, eu só gostaria que todas as pessoas tivessem uma vida digna e feliz. Tenho certeza que a educação é um caminho para essa conquista”, finaliza a doutora.

Por Dihemeson Faria