Retornei a escrever colunas para o Webterra em 2025, com o mesmo propósito de que todos os caminhos que uma coluna possa ter para percorrer e surpreender a mim e aos leitores sempre.
Como disse Mia Couto: “Na verdade, quando escrevo não penso nunca num destinatário”.
Não é que escrevo para mim mesmo, mas para os desconhecidos, é que o enredo se revela apenas no momento da criação.
Então, o que pode oferecer um poeta e colonista com um texto sobre medicina?
No meu caso, que estou fazendo diálise e que já trabalhei como assistente social na área de saúde do município de Salinas e também já substitui secretário de saúde por um tempo, a resposta é simples: perspetiva, trabalho e fé, como disse Mia Couto.
Perspetiva de quem estudou para ser assistente social, mas preferiu seguir outros desígnios, face à dessintonia com uma saúde extirpada de afetos, de carinho e de amor.
De alguém que vive e cria numa comunidade na qual “as perceções sobre a saúde e a doença eram inspiradas num diferente sistema de saber” e, por fim, de um homem e um autor ensinado pela vida a compreender a grandeza de não reduzir a pessoa humana ao paciente.
Encontrei acolhimento na hemodiálise de Salinas, sempre atendido por seres humanos que ensinam ao paciente como é ser humano. Eles têm muita empatia com todos nós.
Outra médica que me inspira é a Dra. Heloísa, de BH, que teve a capacidade de me fazer sorrir quando fiz o transplante renal, e a capacidade de secar minhas lágrimas com um abraço que acalmou meus pensamentos. Além disso, ficou ao meu lado nos meus momentos mais frágeis, me fortalecendo quando perdi o transplante por causa de um polyomavirus.
Como assistente social e paciente da hemodiálise de Salinas, falarei sobre tudo como poeta e como alguém que vive uma realidade humana e cultural bem particular, em que as percepções sobre a saúde e a doença, hoje, são inspiradas num diferente sistema de saber.
É sabido também, que, antes de ter optado pelo serviço social, fui radialista e poeta, marcas que me deixaram tal experiência, forma que olho hoje para a medicina.
Eu fui para a área de saúde pensando ser um acolhedor.
Prova maior, que, durante a minha participação nessa área, ajudei a criar um grupo de acolhimento, que agora tento organizar na hemodiálise.
Na secretaria de saúde percebia que os médicos achavam graça ao entusiasmo de um jovem intrigado pela ideia de acolher, numa área que tratava só do paciente.
Recordo-me de um desses médicos ter me chamado e me perguntado: “Sabes o que é acolhimento?”.
Respondi que sim, que era uma das mais reconhecidas formas de recuperar a auto estima dos pacientes, mostrando que eles são seres humanos.
Ele disse: “Para seres acolhedor precisas de ser sensível, mas forte”.
Eu disse para ele aquilo que eu pensava: “A sensibilidade já é uma força”.
E, acrescentei: “Um hospital em que falta esse sentido de empatia e afeto não é um local de cura, é uma oficina de trabalho”.
Cheguei também a coordenar os trabalhos do NASF em Salinas e posso caracterizar os desafios atuais da medicina e dos cuidados de saúde primária.
Salinas para os governos materialistas é um dos municípios pobres do Brasil. Toda a assistência médica está marcada por essa enorme limitação.
Por outro lado, nós ainda hoje beneficiamos de uma política de saúde pública que foi instalada logo a seguir à democratização e, que, logo no governo do PT, no quadro das opções daquele momento, colocaram todo o ênfase nos cuidados primários.
Campanhas de vacinação foram massificadas logo nos primeiros anos e esse legado continua a ajudar, não apenas na prevenção de doenças, mas também na aceitação da necessidade e da eficácia das vacinas. Criei aqui em Salinas um programa que chamava: “Amiguinho do Peito”, responsável em distribuir leite e banana. Em contra partida, os pais tinham de levar às crianças para serem vacinadas, e as mães, tinham de fazer o pré-natal.
Um dos desafios até hoje é o modo como a rede de cuidados primários se articula com os chamados médicos tradicionais, que, para uma grande parte da população, continuam a ser a primeira porta de prestação de socorros.
Partindo disso, vou propor a criação de um grupo de acolhimento na hemodiálise de Salinas, que consiste em: acolher pessoas que estão lá e chegam em situação difícil de não aceitação da DRC e do tratamento.
A psicologia e serviço social podem dar contribuições no sentido de tornar o servidor da saúde alguém mais capaz de interpretar as necessidades e a experiência do doente, indo além da mera avaliação dos mecanismos biológicos e fisiológicos.
Recordo-me de quando trabalhei no Bradesco e ia às consultas do médico no Sindicato dos Bancários em BH. O médico nunca levantou a cabeça para olhar a mim ou aos trabalhadores bancarios.
Nunca olhou em nossos olhos e nunca nos concedeu mais tempo de escuta, a não ser àquele que lhe era estritamente necessário.
Já tive médicos aqui em Salinas, que eram absolutamente o oposto, deixavam-me quase curado apenas pelo fato de me darem atenção e me escutarem durante a consulta. Hoje revivo isso com médicos que me acompanham.
Um médico renova sempre aquilo que se constituiu como uma presença primordial de uma mãe (ou de um pai), em que a criança recorre para ir mostrar um “dói-dói”.
O conforto que essa voz e essa presença instauram é o primeiro passo para que essa dor deixe de existir.